O esquema financeiro da moeda virtual falsa Kriptacoin, que fez 40 mil vítimas somente no Distrito Federal e em Goiás e movimentou R$ 250 milhões em um semestre, usava um sistema intrincado de fraudes, estelionato e promessas de “dinheiro fácil”.
Ao longo de 40 páginas, a denúncia oferecida pelo Ministério Público do DF contra 16 suspeitos detalha os métodos adotados pelo grupo – e as “brechas” deixadas ao longo do processo.
O documento foi enviado à Justiça no fim de agosto, mas o teor completo estava sob sigilo. Na denúncia, o MP afirma que os operadores do esquema prometiam lucros de até “1% ao dia” sobre o capital investido – cerca de 55 vezes o rendimento médio da poupança e 30 vezes o rendimento de fundos de renda fixa, por exemplo.
A empresa Wall Street Corporate e a agência Kriptaexpress, criadas para “operar” os Kriptacoins, não tinham autorização e nem registro na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) – que, aliás, ainda não tem regulamentação para moedas virtuais no país.
Isso não impediu os suspeitos de divulgarem os benefícios da moeda, que teria rentabilidade proveniente da “Bolsa de Wall Streett”.
Além do erro na grafia, a divulgação feita pelos associados escondia o fato de que a Bolsa de Nova York e as instituições da Wall Street ainda não aderiram formalmente a nenhuma criptomoeda.
Mesmo o Bitcoin e o Ethereum, mais famosos e de alcance mundial, ainda são tratados como “alto risco” por investidores tradicionais. Nas transações em criptomoeda, o dinheiro é enviado de uma carteira online para outra sem necessidade de um terceiro para “validar” ou “limpar” a operação.
Segundo a denúncia, pelo menos 3 dos 16 acusados de envolvimento no esquema usaram CPFs falsos para criar pessoas jurídicas e contas bancárias.
Uma das empresas fantasma, a Kripta Coin Investimentos em Tecnologia Ltda., tinha endereço declarado em Goiânia e capital social de R$ 1 milhão. Outra, a WSC Brazil Investimento em Tecnologia da Informação Eireli, tem capital de R$ 2 milhões.
O sistema de investigação de movimentações bancárias do Ministério Público Federal também mostrou, segundo a denúncia, que “grande parte dos valores aportados nas contas bancárias das empresas não eram utilizados para pagamento da rentabilidade prometida, mas distribuídos entre os líderes da organização (topo da pirâmide)”.
Os pagamentos ao “baixo clero” eram feitos apenas de modo eventual, para algumas vítimas selecionadas, como forma de dar veracidade às promessas de lucro.
Enquanto isso, bens de luxo eram comprados pelos suspeitos e ocultados “em nome de empresas e pessoas ‘laranjas'”.
Segundo a investigação, a operação proposta pela Kriptacoin se enquadra no crime financeiro conhecido como “esquema de pirâmide”, ou “esquema Ponzi”.
Entre as características típicas desse tipo de mecanismo, o MP cita:
promessa de rendimentos estratosféricos; pouca ou nenhuma informação sobre a empresa, sendo que as informações repassadas por meio de palestras, vídeos, etc; comercialização de produto (moeda virtual) que requer conhecimentos técnicos específicos; inexistência real de produto (apenas uma fachada para a pirâmide)
obtenção de comissão recebida também pelo recrutamento de novos associados – e não através de vendas para consumidores não participantes do esquema.
O esquema da Kriptacoin também é chamado de “pichardismo” na denúncia. O termo aparece na Lei dos Crimes Contra a Economia Popular, de 1951, e se refere à pirâmide que atinge um “número indeterminado” de pessoas – uma espécie de estelionato em larga escala. Nesse caso, a estimativa gira em torno de 40 mil vítimas em três anos.
Para entrar na Kriptacoin, o interessado deveria aderir a um entre três planos oferecidos. Em seguida, era incentivado a indicar novos adeptos, com a promessa de que receberia mais dinheiro conforme essas pessoas fossem entrando no “clube”. Segundo o MP, esse funcionamento não era descrito nos contratos, por causa “da sua explícita ilicitude”.
Embora não seja regulamentado pelo Banco Central e nem por outros órgãos financeiros nacionais, o uso e o comércio das criptomoedas não é ilegal. Ao contrário de países como Bolívia e Tailândia, que estabelecem restrições para o uso de moedas estrangeiras, o Brasil não tem leis específicas sobre o tema.
Na ação enviada à Justiça, o MP cita orientações do escritor Fernando Ulrich, creditado no documento como “o maior especialista em moedas virtuais do país”. Segundo o texto, há alguns indícios que podem ajudar os interessados a identificar um golpe ou pirâmide escondido pela oferta de moedas virtuais, como o da Kriptacoin.
São eles:
Há uma empresa “liderando” a gestão dos recursos investindo nos supostos ativos? Se sim, sinal de alerta.
A empresa está vendendo sua própria moeda digital? Se sim, sinal de alerta.
Há pessoas ativamente buscando investidores para essa moeda? Sim? Alerta.
Os retornos apresentados são estratosféricos? Caso positivo, alerta forte.
Os investidores são incentivados e comissionados para atrair novos investidores? Alerta, alerta.
Vendem pacotes de mineração da sua moeda? Alerta.
Prometem retornos elevados obtidos por meio de trading diário com moedas digitais (supostamente com o próprio bitcoin)? Alerta.
Você não tem como ser o próprio custodiante da criptomoeda? Alerta.
Até a última semana, a Polícia Civil do DF já tinha apreendido 15 carros de luxo e um helicóptero de R$ 3,6 milhões, supostamente ligados a empresários e operadores do golpe da moeda falsa Kriptacoin.
A operação Kripta foi deflagrada pela Coordenação de Repressão aos Crimes Contra o Consumidor e Ordem Tributária e a Fraudes (Corf), em setembro, e apura movimentação financeira de R$ 250 milhões. Os bens devem ser leiloados para ressarcir as vítimas dos golpes.
Desde o dia 21 de setembro, quando a Polícia Civil desarticulou a organização criminosa, 11 pessoas foram presas. Uma delas conseguiu converter a prisão preventiva em domiciliar por razão de complicações na recuperação de cirurgia de próteses mamárias.
Fonte: G1 e DPF